Me deparei hoje com um texto de Matheus Pichonelli da Carta Capital com o título "Direitos humanos para humanos direitos" e me veio a inspiração de escrever essa resposta.
Recomendo ler o texto da Carta Capital antes de ler o meu, para dar o contexto certo: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/direitos-humanos-para-humanos-direitos/
Esquerdos humanos para humanos esquerdos
Quisera eu que Raul fosse um sujeito inventado pelos amigos da faculdade para personalizar tudo que não queríamos nos transformar ao longo dos anos, infelizmente, Raul, ou Raulzito como ele gosta de ser chamado, é uma praga que infesta os corredores do campus.
Raulzito, revolucionário de bar e ativista do próprio umbigo.
Raulzito não é uma pessoa ou estereótipo, na verdade é o fruto de uma sociedade em relativo equilíbrio social, que só aprendeu o que é violência pelo noticiário da televisão e pelos jogos do videogame. Raulzito é um revolucionário que nunca passou sofrimento de verdade.
É a favor do casamento gay, mas nunca manteve um relacionamento sério por mais de seis meses. É a favor da liberação da maconha, mas sempre que fuma esquece a data do protesto. Toda a noite precisa dar um pega num baseadinho da massa para conseguir dormir, mas diz que não é viciado, afinal, maconha não vicia. Seu lema é “hasta la victoria siempre”, que leu no quadro de um hotel na recoleta em Buenos Aires, em uma de suas muitas viagens financiadas por papai. Em sua fase mais radical, ativista dos direitos animais, deixou de comer carne, mas não de peixe, porque rodízio de sushi é sagrado.
Cita autores e conhece os principais livros de esquerda, ama de paixão o Das Kapital, mas nunca leu, porque a professora não disponibilizou no xérox. Raulzito é assim, acostumado a ter tudo na mão. Defende a igualdade entre os povos e sonha com o fim das favelas, mas nunca trocou mais de duas frases com Dolores, a faxineira nordestina favelada que o criou. É ativista feroz dos direitos humanos, mas ficou ao lado da mãe quando Dolores um dia cobrou seus direitos, depois de 20 anos trabalhando sem carteira assinada.
Raulzito faz mobilizações virtuais e abaixo assinados contra desocupações de favelas em bairros distantes que, normalmente, nunca ouviu falar, mas sempre que pode caçoa do mendigo que costuma esmolar no farol da faculdade. Sua relação com as pessoas que passam por necessidades, porém, é muito amistosa, desde que o vidro filmado de seu carro esteja fechado e o ar condicionado ligado.
Eventualmente Raulzito e Almeidinha se encontram na fila do caixa do supermercado. Raulzito com um pack de Heineken e dois pacotes de Doritos e Almeidinha com a compra do mês e uma caixinha de Brahma. Almeidinha paga com uns trocados e passa o resto no débito, enquanto Raulzito joga tudo em seu cartão Emerald Premium sem limite. Raulzito sai com as compras em duas sacolinhas plásticas, ele queria usar sua sacola retornável, mas esqueceu no porta-malas do carro e ficou com preguiça de ir buscar.
Raulzito defende uma sociedade melhor, mas tem dificuldade em lidar com pessoas. Suas opiniões são definidas por uma visão reacionária dos fatos, baseada numa lógica distorcida de que o contrário do ruim é bom. Porque longe das cercas embandeiradas que separam quintais, no cume calmo do meu olho que vê, assenta a sombra sonora de um disco voador.
10/11/2012
06/11/2012
Fortaleza
Recebi essa mensagem de um amigo e compartilho aqui por achar que é uma pergunta que aflige a todos, sem exceção. Obviamente manterei a identidade dele como a nossa essência: anônima.
Caro, amigo.
Ultimamente sinto-me um prisioneiro dos meus vícios.
Sei tantas coisas certas a fazer mas não consigo deixar meus vícios.
Assistir TV, dormir tarde, desejo sexual, comer carne, açúcar, vinho.
E parece que estou sempre sem tempo. Atrasado.
Sou muito grato por Deus me deixar viver tantos dias.
Um após o outro. São muitas oportunidades de se Iluminar.
Acredito que a vida após essa encarnação pode ser infernal, e não é uma boa
idéia não estar disperto.
O que me falta para fazer o que eu sei que é o certo a fazer?
Eu sinto que teria que transformar minha casa num Templo, um Ashram.
Caro, amigo.
Eu te conheço há algum tempo e sei que às vezes você se deixa diminuir muito por essa cobrança constante que você mesmo se impõe.
Olhe em volta, sua família é maravilhosa, seus filhos são lindos e cheios de saúde e você tem agora uma condição financeira estável que lutou muito para conseguir. Não se esqueça disso, isso é a sua fortaleza.
O restante você pode ir trabalhando aos poucos, um dia após o outro.
Prazeres são bons também, desfrute com vontade e observe que eles são passageiros, que tudo é passageiro, mas que ainda assim, algo em nós é eterno e constante, isso que importa. Encontrar essa essência e manter a consciência dela é o que importa, comer menos carne, assistir menos TV, dormir tarde, tudo isso é secundário e começa a "desacontecer" naturalmente quando você está mais próximo de você mesmo.
Acho sua pergunta sensacional! Pense nela durante o seu dia, deixe ela amadurecer: "O que me falta para fazer o que eu sei que é o certo a fazer?". Talvez o caminho seja buscar por quem faz.
Caro, amigo.
Ultimamente sinto-me um prisioneiro dos meus vícios.
Sei tantas coisas certas a fazer mas não consigo deixar meus vícios.
Assistir TV, dormir tarde, desejo sexual, comer carne, açúcar, vinho.
E parece que estou sempre sem tempo. Atrasado.
Sou muito grato por Deus me deixar viver tantos dias.
Um após o outro. São muitas oportunidades de se Iluminar.
Acredito que a vida após essa encarnação pode ser infernal, e não é uma boa
idéia não estar disperto.
O que me falta para fazer o que eu sei que é o certo a fazer?
Eu sinto que teria que transformar minha casa num Templo, um Ashram.
Caro, amigo.
Eu te conheço há algum tempo e sei que às vezes você se deixa diminuir muito por essa cobrança constante que você mesmo se impõe.
Olhe em volta, sua família é maravilhosa, seus filhos são lindos e cheios de saúde e você tem agora uma condição financeira estável que lutou muito para conseguir. Não se esqueça disso, isso é a sua fortaleza.
O restante você pode ir trabalhando aos poucos, um dia após o outro.
Prazeres são bons também, desfrute com vontade e observe que eles são passageiros, que tudo é passageiro, mas que ainda assim, algo em nós é eterno e constante, isso que importa. Encontrar essa essência e manter a consciência dela é o que importa, comer menos carne, assistir menos TV, dormir tarde, tudo isso é secundário e começa a "desacontecer" naturalmente quando você está mais próximo de você mesmo.
Acho sua pergunta sensacional! Pense nela durante o seu dia, deixe ela amadurecer: "O que me falta para fazer o que eu sei que é o certo a fazer?". Talvez o caminho seja buscar por quem faz.
23/09/2012
Entrelaços
Aperte o play e boa leitura.
...
Eu não sabia, ninguém sabia. Aconteceu e como aconteceu, desaconteceu. Tão intenso e rápido, deixando no ar se tudo foi realmente verdade ou não passou de ilusão.
No campo florido em plena primavera ela era uma roseira muito particular, ano após ano florescia apenas um botão. Muitos opinavam que o certo seria cortá-la para dar espaço a um espécime normal, mas nunca me importei, para mim aquela rosa era a mais especial de todo o jardim.
A cada estação aguardava ansioso pelo momento que começava a crescer, cuidando dela como uma filha e namorando de perto seu desabrochar. Sua beleza sempre me surpreendia a cada reencontro, nunca na vida vi outra flor tão especial.
Aquela rosa me transformou, me fez ver a realidade com olhos novos, por ângulos que antes não comtemplava. Sem exageros posso assegurar que minha história é marcada pelo antes e depois de nossos encontros.
Sua beleza ficava ainda mais especial nos dias de chuva, quando o silêncio da casa era quebrado apenas pela sua companhia. Sentia que quando estava em sua presença visitava uma outra dimensão, onde os momentos eram eternos e as horas escoavam em segundos. Minha vontade era largar tudo e viver apenas rosa, como se fosse possível abandonar minha forma e me tornar também botão, imortalizado lado a lado de minha amada.
De olhos fechados sou capaz de descrever cada detalhe de suas formas e relembrar sem esforço o aroma de seu perfume. Depois de minha rosa as outras flores não me preenchem mais, preso voluntariamente a um mundo infinito vermelho bordô.
Infelizmente só senti completamente tudo o que ela significava para mim depois que a perdi. Não sei se foi covardia, ou talvez baixa estima de acreditar que algo tão perfeito desabrochasse para mim de verdade, só sei que tão magicamente como apareceu ela se foi.
Perdido em meus delírios quis impor minha vontade possessiva a algo que cresceu em liberdade. Insciente esperei que sua beleza pudesse esconder o monstro em mim. Besta ferida por seus próprios espinhos que sangra até a última gota de suas más escolhas.
Sem poder se entregar minha amada rosa se fechou em si mesma.
Mais de uma vez chorei em silêncio, abafando a torturante dor no peito para passar por forte no exterior. Duro aprendizado de que lágrimas e lamúrios não trazem de volta o que se foi.
Do passado guardo apenas uma pequena caixa de recordações no fundo de minhas memórias. Ali cuido de cada detalhe de nossas lembranças. Todo dia antes de dormir, na segurança de minha solidão, abro a caixa por alguns momentos para reviver novamente o que um dia foi um amor imensurável. Quem aconselha a esquecer e virar a página a cada coração partido nunca se apaixonou de verdade.
Te amo, minha rosa. Onde quer que esteja, te amo!
Do seu eterno,
Cravo
...
Eu não sabia, ninguém sabia. Aconteceu e como aconteceu, desaconteceu. Tão intenso e rápido, deixando no ar se tudo foi realmente verdade ou não passou de ilusão.
No campo florido em plena primavera ela era uma roseira muito particular, ano após ano florescia apenas um botão. Muitos opinavam que o certo seria cortá-la para dar espaço a um espécime normal, mas nunca me importei, para mim aquela rosa era a mais especial de todo o jardim.
A cada estação aguardava ansioso pelo momento que começava a crescer, cuidando dela como uma filha e namorando de perto seu desabrochar. Sua beleza sempre me surpreendia a cada reencontro, nunca na vida vi outra flor tão especial.
Aquela rosa me transformou, me fez ver a realidade com olhos novos, por ângulos que antes não comtemplava. Sem exageros posso assegurar que minha história é marcada pelo antes e depois de nossos encontros.
Sua beleza ficava ainda mais especial nos dias de chuva, quando o silêncio da casa era quebrado apenas pela sua companhia. Sentia que quando estava em sua presença visitava uma outra dimensão, onde os momentos eram eternos e as horas escoavam em segundos. Minha vontade era largar tudo e viver apenas rosa, como se fosse possível abandonar minha forma e me tornar também botão, imortalizado lado a lado de minha amada.
De olhos fechados sou capaz de descrever cada detalhe de suas formas e relembrar sem esforço o aroma de seu perfume. Depois de minha rosa as outras flores não me preenchem mais, preso voluntariamente a um mundo infinito vermelho bordô.
Infelizmente só senti completamente tudo o que ela significava para mim depois que a perdi. Não sei se foi covardia, ou talvez baixa estima de acreditar que algo tão perfeito desabrochasse para mim de verdade, só sei que tão magicamente como apareceu ela se foi.
Perdido em meus delírios quis impor minha vontade possessiva a algo que cresceu em liberdade. Insciente esperei que sua beleza pudesse esconder o monstro em mim. Besta ferida por seus próprios espinhos que sangra até a última gota de suas más escolhas.
Sem poder se entregar minha amada rosa se fechou em si mesma.
Mais de uma vez chorei em silêncio, abafando a torturante dor no peito para passar por forte no exterior. Duro aprendizado de que lágrimas e lamúrios não trazem de volta o que se foi.
Do passado guardo apenas uma pequena caixa de recordações no fundo de minhas memórias. Ali cuido de cada detalhe de nossas lembranças. Todo dia antes de dormir, na segurança de minha solidão, abro a caixa por alguns momentos para reviver novamente o que um dia foi um amor imensurável. Quem aconselha a esquecer e virar a página a cada coração partido nunca se apaixonou de verdade.
Te amo, minha rosa. Onde quer que esteja, te amo!
Do seu eterno,
Cravo
11/09/2012
Dia de feira
Todo dia é dia de feira. Os gritos abafados dos vendedores em meio à rua e os clientes apressados de um lado para o outro procurando o melhor pelo menor preço.
Mais por menos; o lema da sociedade de hoje. O celular pula na mesa, na mesma hora em que o e-mail chega, o facebook apita e o twitter xinga. O recado do chefe, funcionário, mulher, marido, amante, amigo, colega, começa sempre com a mesma frase: "URGENTE!!!" e uma exclamação apenas não basta.
Arrancam-se pedaços para preencher vazios que não podem ser preenchidos: “Não encontro às peças que faltam no meu quebra-cabeça, me dê as suas!”.
Assim as crianças aprendem brincando a matar um leão por dia e achar bonito; “Just do it! - Apenas faça!”, é o que dizem. Em nome de que? Em nome de quem?
Num mundo sem distâncias, de relacionamentos instantâneos, parece que as pessoas esqueceram como se relacionar. Ser amigo é mais que curtir?
Mais um dia se passou, mais um dia esquivando-se constantemente das agressões que surgem de todos os lados. Engula se quiser, mas não diga que é normal.
A mais valiosa empresa do mundo tem um valor de mercado de 600 bilhões de dólares. Apenas números imaginários em jogos de gente que se diz grande. 600 bilhões divididos por 7 bilhões de seres humanos: 85 mil dólares; mais dinheiro do que 78% dessas pessoas terão recebido em toda uma vida (The Economist, 2009). Não é normal!
A hipótese da geração espontânea há muito foi refutada; se algo cresce, alguém tem de diminuir. Mais, mais, mais, garante o comprimido de ganância distribuído na merenda.
Engula se quiser, mas não diga que não foi avisado, as estrelas são testemunhas.
Lá no fundo do espírito, no porão escuro das memórias abandonadas, o buraco negro do desconhecido continua ativo. O que sacia?
Os olhos encontram o céu, vasto dos dois lados. A brisa sopra suave no jardim e dentro não encontra obstáculos. Comunhão completa com o Cosmos; se tudo que é, é tudo de nós, por que brigar por uma dúzia de laranjas e meio quilo de tomate?
Mais por menos; o lema da sociedade de hoje. O celular pula na mesa, na mesma hora em que o e-mail chega, o facebook apita e o twitter xinga. O recado do chefe, funcionário, mulher, marido, amante, amigo, colega, começa sempre com a mesma frase: "URGENTE!!!" e uma exclamação apenas não basta.
Arrancam-se pedaços para preencher vazios que não podem ser preenchidos: “Não encontro às peças que faltam no meu quebra-cabeça, me dê as suas!”.
Assim as crianças aprendem brincando a matar um leão por dia e achar bonito; “Just do it! - Apenas faça!”, é o que dizem. Em nome de que? Em nome de quem?
Num mundo sem distâncias, de relacionamentos instantâneos, parece que as pessoas esqueceram como se relacionar. Ser amigo é mais que curtir?
Mais um dia se passou, mais um dia esquivando-se constantemente das agressões que surgem de todos os lados. Engula se quiser, mas não diga que é normal.
A mais valiosa empresa do mundo tem um valor de mercado de 600 bilhões de dólares. Apenas números imaginários em jogos de gente que se diz grande. 600 bilhões divididos por 7 bilhões de seres humanos: 85 mil dólares; mais dinheiro do que 78% dessas pessoas terão recebido em toda uma vida (The Economist, 2009). Não é normal!
A hipótese da geração espontânea há muito foi refutada; se algo cresce, alguém tem de diminuir. Mais, mais, mais, garante o comprimido de ganância distribuído na merenda.
Engula se quiser, mas não diga que não foi avisado, as estrelas são testemunhas.
Lá no fundo do espírito, no porão escuro das memórias abandonadas, o buraco negro do desconhecido continua ativo. O que sacia?
Os olhos encontram o céu, vasto dos dois lados. A brisa sopra suave no jardim e dentro não encontra obstáculos. Comunhão completa com o Cosmos; se tudo que é, é tudo de nós, por que brigar por uma dúzia de laranjas e meio quilo de tomate?
04/09/2012
Ao centro do centro
Quando vejo as fotos tiradas em Marte pelo robô da Nasa me sinto feliz e triste ao mesmo tempo. Feliz, por evoluirmos como espécie a ponto de ousar com sucesso uma missão tão difícil. Triste, por ver que as fotos não passam de pilhas de pedras avermelhadas, que pouco vão contribuir para preencher nosso sentimento mútuo de solidão.
Sem esforço me lembro quando me apaixonei por viajar. Conheci os recantos mais afastados, paradisíacos e, por vezes, inóspitos do que se chama de alma humana. Sim, porque viajar pelo mundo não requer mais do que dinheiro e um passaporte. Viajar para dentro de você, por outro lado, requer uma série de habilidades que devem ser desenvolvidas com uma prática incessante.
A primeira delas começou a ser desenvolvida quando escalava árvores de mais de 30 metros sem nenhum tipo de equipamento de escalada ou de segurança. Eu nunca escalei para provar que era capaz, ou para superar o desafio da altura. Eu escalava porque gostava de estar com as árvores. Nunca cai ou me machuquei e atribuo isso não a minha habilidade ou técnica, mas simplesmente pelo fato que eu confiava nas árvores. Confiar além da razão, esse é a primeira habilidade necessária.
A segunda eu aprendi com a meditação: observar sem interferir. Temos pouco hábito de simplesmente observar, somos educados desde pequenos a tecer comentários e opiniões sobre as coisas que chegam até nós. Observar sem interferir significa estar livre de julgamentos sobre bom ou ruim, melhor ou pior. Observar sem interferir, essa é a segunda habilidade necessária.
Por fim, a terceira habilidade, não é bem uma habilidade, é uma qualidade: determinação. Estar determinado é fundamental para seguir adiante, mesmo quando tudo fluir na direção contrária. Sem uma determinação pura ninguém pode se arriscar nos meandros da alma, se você questiona sua determinação, melhor assistir a um filme e comer pipoca; essa jornada não é sua. Determinação além das limitações, essa é a terceira habilidade.
Indo adiante sem se apegar, independente do que aconteça, esse é o caminho.
Dizem que existem duas trilhas possíveis na alma humana: a clara e a escura. Percorri as duas e digo com segurança, não existem duas trilhas distintas. Não se prova o amor, sem sentir o pavor; nem o êxtase, sem mergulhar no medo. E quando digo provar, me refiro a realmente experimentar todas as dimensões de cada pensamento, emoção e sentimento, não nossa prática diária de sentir um pouco e logo depois entulhar nossa consciência com novos estímulos.
E o que existe do outro lado do caminho que recompense tantos desafios? Nada além do que você já tem hoje, só que temperado com uma paz e uma certeza enormes. Não há libertação maior do que se reintegrar a um Cosmos que você nunca deixou, apenas acreditava que estava separado.
Nesse exato momento somos tudo que existe, sempre existiu e sempre existirá, sem nenhuma mácula.
Suas respostas não estão do lado de fora; não estão na Índia, Japão, Itália ou Estados Unidos. Também não estão em Marte ou Plutão, estão exatamente em você: vá buscá-las!
Sem esforço me lembro quando me apaixonei por viajar. Conheci os recantos mais afastados, paradisíacos e, por vezes, inóspitos do que se chama de alma humana. Sim, porque viajar pelo mundo não requer mais do que dinheiro e um passaporte. Viajar para dentro de você, por outro lado, requer uma série de habilidades que devem ser desenvolvidas com uma prática incessante.
A primeira delas começou a ser desenvolvida quando escalava árvores de mais de 30 metros sem nenhum tipo de equipamento de escalada ou de segurança. Eu nunca escalei para provar que era capaz, ou para superar o desafio da altura. Eu escalava porque gostava de estar com as árvores. Nunca cai ou me machuquei e atribuo isso não a minha habilidade ou técnica, mas simplesmente pelo fato que eu confiava nas árvores. Confiar além da razão, esse é a primeira habilidade necessária.
A segunda eu aprendi com a meditação: observar sem interferir. Temos pouco hábito de simplesmente observar, somos educados desde pequenos a tecer comentários e opiniões sobre as coisas que chegam até nós. Observar sem interferir significa estar livre de julgamentos sobre bom ou ruim, melhor ou pior. Observar sem interferir, essa é a segunda habilidade necessária.
Por fim, a terceira habilidade, não é bem uma habilidade, é uma qualidade: determinação. Estar determinado é fundamental para seguir adiante, mesmo quando tudo fluir na direção contrária. Sem uma determinação pura ninguém pode se arriscar nos meandros da alma, se você questiona sua determinação, melhor assistir a um filme e comer pipoca; essa jornada não é sua. Determinação além das limitações, essa é a terceira habilidade.
Indo adiante sem se apegar, independente do que aconteça, esse é o caminho.
Dizem que existem duas trilhas possíveis na alma humana: a clara e a escura. Percorri as duas e digo com segurança, não existem duas trilhas distintas. Não se prova o amor, sem sentir o pavor; nem o êxtase, sem mergulhar no medo. E quando digo provar, me refiro a realmente experimentar todas as dimensões de cada pensamento, emoção e sentimento, não nossa prática diária de sentir um pouco e logo depois entulhar nossa consciência com novos estímulos.
E o que existe do outro lado do caminho que recompense tantos desafios? Nada além do que você já tem hoje, só que temperado com uma paz e uma certeza enormes. Não há libertação maior do que se reintegrar a um Cosmos que você nunca deixou, apenas acreditava que estava separado.
Nesse exato momento somos tudo que existe, sempre existiu e sempre existirá, sem nenhuma mácula.
Suas respostas não estão do lado de fora; não estão na Índia, Japão, Itália ou Estados Unidos. Também não estão em Marte ou Plutão, estão exatamente em você: vá buscá-las!
27/07/2012
Rotina
Tem um corpo no meio da sala.
Eu o conheço.
Não sei onde estou.
Não sei o que aconteceu.
Não sinto nada...
A concha tem fundo.
Me aconchego.
Hiberno.
Saudades da primavera.
Eu o conheço.
Não sei onde estou.
Não sei o que aconteceu.
Não sinto nada...
A concha tem fundo.
Me aconchego.
Hiberno.
Saudades da primavera.
23/07/2012
Mente aberta
Já estive aqui antes. Me lembro direitinho: a mesma confusão, o mesmo isolamento. 5:55h da madrugada, os olhos querem fechar, mas a mente não deixa.
"Protegido, castigado, contrariado.
Perdido, ferrado, enganado.
Adormecido, afastado, abandonado.
Esquecido, isolado, guardado."
Vejo que as palavras que entalhei no fundo do poço continuam aqui: "corpo fechado". Um lembrete.
A diferença é que dessa vez me conheço mais; estar aqui só aumenta minha determinação. Eu cresço na dificuldade...
"Protegido, castigado, contrariado.
Perdido, ferrado, enganado.
Adormecido, afastado, abandonado.
Esquecido, isolado, guardado."
Vejo que as palavras que entalhei no fundo do poço continuam aqui: "corpo fechado". Um lembrete.
A diferença é que dessa vez me conheço mais; estar aqui só aumenta minha determinação. Eu cresço na dificuldade...
17/07/2012
Divino Fracasso
O hall da fama dos nocauteados está sempre vazio, mas é o que guarda as melhores histórias. Página 255 do quinquagésimo terceiro caderno dos derrotados: minha história completa, em toda sua obscura glória.
O mais interessante de se ler as histórias dos perdedores é que o final nunca é importante. Dessa forma, sempre que folheio essas antigas lembranças nunca leio o último parágrafo. Carrego as histórias desses anti-heróis com a pureza da sua luta e não da decepção de seus resultados. Se puder dizer que algo aprendi, é que existe sempre muito esforço em cada derrota.
Poderia falar horas sobre essas histórias, contando as peculiaridades de cada conto, mas sei que seu tempo é curto, caro leitor, assim prefiro contar apenas a minha.
Me lembro como se fosse ontem, um dia 17 de julho, frio e úmido, sem nada de especial, foi quando aquela ideia maluca me acertou em cheio. Aquele dia mal podia imaginar que pensaria nela nos 365 dias seguintes, mal imaginava que ela se tornaria meu céu e meu inferno.
Contra tudo e contra todos levei meu plano adiante e me assustei quando comecei a notar que, apesar das mínimas probabilidades, as coisas começavam a confabular na direção que eu sonhava.
Em pouco menos de um ano eu me tornei um expert nela, sem nunca tê-la visto, tocado ou sentido. Sabia de todos os detalhes, completava as histórias dos que já tinham experimentado, como um professor que orienta seus alunos. Contudo, apesar de manter uma aparência externa confiante e descontraída, por dentro sentia lapsos de que talvez não pudesse alcançar o que almejava.
A verdade é que quando uma ideia se torna uma obsessão, ao invés de nutrir ela consome seu portador. Mesmo assim, mesmo duvidando de minhas capacidades, passei a treinar diariamente, usando todos os recursos e técnicas disponíveis. Pesquisei, questionei e interagi com tudo que aparecia em minha frente. Tracei todos os detalhes, todas as possibilidades, meu plano era infalível, com rotas redundantes em todos os seus pontos críticos. O que não era infalível ou redundante era eu.
O mais difícil de trilhar o caminho do fracasso é que você só descobre que falha no último instante. Emociono-me lembrando daquele eu confiante que por muitas vezes desfilou nesses 365 dias. Como ele acreditava que tudo seria fácil. Se por um só instante olhasse com clareza teria visto que não era normal fazer tudo aquilo por algo tão simples, mas falar do destino depois que ele se desdobra é fácil.
Mesmo assim não posso deixar de comentar sobre sua garra e coragem, como ele mergulhou em águas negras que a maioria não gosta nem de imaginar. Como seu corpo franzino aprendeu a conter e aliviar a dor de muitas situações de sofrimento sem perder o riso no rosto. Como ele se tornou íntimo do medo, quando todos o escondem repetindo para si mesmos que são imunes.
Talvez você se pergunte se eu teria desistido da ideia se soubesse no começo que não seria capaz de alcança-la, ou se iria tentar algo diferente. A resposta é: teria feito de qualquer jeito e não teria mudado nada, pois não há nada mais que pudesse ser feito. O sucesso não é apenas fruto de seu empenho, mas de uma série de causas e condições propicias que precisam estar presentes.
Talvez não fosse o momento certo. Talvez não fosse para acontecer. Muitos dirão que não importa o resultado, mas sim o caminho trilhado, que não importa vencer e sim competir, mas são justamente esses que nunca vejo folheando os cadernos do hall dos nocauteados.
O que aprendi é que o fracasso não é ruim apenas porque existe uma história bonita por trás dele, mas porque a derrota também tem muitas qualidades. Ninguém importuna os perdedores na rua, ninguém exige dos perdedores mais do que eles podem dar, assim os perdedores vivem em paz no último pelotão, aquele que nunca é despachado para a guerra.
Fracassar me fez perceber que sou comum, me fez perceber que sou vulnerável, que pertenço a algo muito, muito maior, sobre o qual não tenho controle algum. Perder é uma lição impagável de humildade.
Curioso sobre qual foi à ideia que me acertou? Deixo isso para você imaginar. Não é importante. O último parágrafo dessa história é de sua autoria, ou talvez apenas ainda não tenha sido escrito.
O mais interessante de se ler as histórias dos perdedores é que o final nunca é importante. Dessa forma, sempre que folheio essas antigas lembranças nunca leio o último parágrafo. Carrego as histórias desses anti-heróis com a pureza da sua luta e não da decepção de seus resultados. Se puder dizer que algo aprendi, é que existe sempre muito esforço em cada derrota.
Poderia falar horas sobre essas histórias, contando as peculiaridades de cada conto, mas sei que seu tempo é curto, caro leitor, assim prefiro contar apenas a minha.
Me lembro como se fosse ontem, um dia 17 de julho, frio e úmido, sem nada de especial, foi quando aquela ideia maluca me acertou em cheio. Aquele dia mal podia imaginar que pensaria nela nos 365 dias seguintes, mal imaginava que ela se tornaria meu céu e meu inferno.
Contra tudo e contra todos levei meu plano adiante e me assustei quando comecei a notar que, apesar das mínimas probabilidades, as coisas começavam a confabular na direção que eu sonhava.
Em pouco menos de um ano eu me tornei um expert nela, sem nunca tê-la visto, tocado ou sentido. Sabia de todos os detalhes, completava as histórias dos que já tinham experimentado, como um professor que orienta seus alunos. Contudo, apesar de manter uma aparência externa confiante e descontraída, por dentro sentia lapsos de que talvez não pudesse alcançar o que almejava.
A verdade é que quando uma ideia se torna uma obsessão, ao invés de nutrir ela consome seu portador. Mesmo assim, mesmo duvidando de minhas capacidades, passei a treinar diariamente, usando todos os recursos e técnicas disponíveis. Pesquisei, questionei e interagi com tudo que aparecia em minha frente. Tracei todos os detalhes, todas as possibilidades, meu plano era infalível, com rotas redundantes em todos os seus pontos críticos. O que não era infalível ou redundante era eu.
O mais difícil de trilhar o caminho do fracasso é que você só descobre que falha no último instante. Emociono-me lembrando daquele eu confiante que por muitas vezes desfilou nesses 365 dias. Como ele acreditava que tudo seria fácil. Se por um só instante olhasse com clareza teria visto que não era normal fazer tudo aquilo por algo tão simples, mas falar do destino depois que ele se desdobra é fácil.
Mesmo assim não posso deixar de comentar sobre sua garra e coragem, como ele mergulhou em águas negras que a maioria não gosta nem de imaginar. Como seu corpo franzino aprendeu a conter e aliviar a dor de muitas situações de sofrimento sem perder o riso no rosto. Como ele se tornou íntimo do medo, quando todos o escondem repetindo para si mesmos que são imunes.
Talvez você se pergunte se eu teria desistido da ideia se soubesse no começo que não seria capaz de alcança-la, ou se iria tentar algo diferente. A resposta é: teria feito de qualquer jeito e não teria mudado nada, pois não há nada mais que pudesse ser feito. O sucesso não é apenas fruto de seu empenho, mas de uma série de causas e condições propicias que precisam estar presentes.
Talvez não fosse o momento certo. Talvez não fosse para acontecer. Muitos dirão que não importa o resultado, mas sim o caminho trilhado, que não importa vencer e sim competir, mas são justamente esses que nunca vejo folheando os cadernos do hall dos nocauteados.
O que aprendi é que o fracasso não é ruim apenas porque existe uma história bonita por trás dele, mas porque a derrota também tem muitas qualidades. Ninguém importuna os perdedores na rua, ninguém exige dos perdedores mais do que eles podem dar, assim os perdedores vivem em paz no último pelotão, aquele que nunca é despachado para a guerra.
Fracassar me fez perceber que sou comum, me fez perceber que sou vulnerável, que pertenço a algo muito, muito maior, sobre o qual não tenho controle algum. Perder é uma lição impagável de humildade.
Curioso sobre qual foi à ideia que me acertou? Deixo isso para você imaginar. Não é importante. O último parágrafo dessa história é de sua autoria, ou talvez apenas ainda não tenha sido escrito.
29/05/2012
Câncer em calda
A atarefada realeza corre esbaforida por sob a cabeça de seus súditos, os últimos acontecimentos tinham colocado em cheque sua autoridade e alguém tinha de pagar por isso.
Não distante um franzino vira-latas fuça o lixo atrás de alimento. O corpo consumido pela sarna mal é capaz de manter em pé o pequeno animal. Desde que nasceu sua vida solitária tem sido uma incansável busca pela sobrevivência. Sobrevivência essa que será cessada em breve para acalmar com sangue os Deuses do Jardim do Ego.
Não eram dólares, barras de ouro nem barris de petróleo, a moeda de troca naquele aparente pacato vilarejo era a vaidade. Com vaidade se pagava e com vaidade se cobrava e como eram altos os preços do mercado.
No reino da vaidade cada ser humano é um feudo e cada feudo é pateticamente administrado como se fosse o mais importante do mundo. Dezenas, centenas, milhares de prefeitos, senhores e generais, cultuando seus domínios como se fossem o centro do universo.
Quando Copérnico atestou que a Terra gira ao redor do Sol ele ainda não era capaz de enxergar uma verdade maior: a Terra gira ao redor do umbigo de cada ser humano.
Pequeninas cargas de energia que quando amontoadas em determinada ordem geram uma infinidade de variações, que dentro da realidade humana podem se manifestar como santos ou demônios. E eram demônios que consumiam cada grama do pequeno vilarejo, em troca de uma momentânea foto no hall da fama dos há muito esquecidos antepassados.
Território limitado e cercas bem definidas, forçam a ganância a avançar por novos reinos imaginários registrados em ata e formalizados oficialmente em siglas. O organograma na parede materializa o que não existe.
Mesmas pessoas, mesmos prédios, nova administração, fundada exatamente sobre as mesmas premissas das administrações anteriores. Se digo que sim escuto um não, se dizem que não retruco com o sim. Positivo, negativo; aprovado, refutado. Muito foi feito, mas pouco foi mudado.
Pausa para o café. O inocente vira-latas respira seus últimos sopros de ar.
Cada frase um discurso, ouvidos escancarados para absorver a genialidade alheia, fortemente ancorada em meias verdades cuidadosamente estabelecidas sobre resultados pouco conclusivos. Entenda, você não precisa da verdade, precisa da minha opinião.
E assim, um atrás dos outros eles vão e vem. Sempre eternos em suas hegemonias temporárias. Chegam fortes e gordos e partem velhos e cansados; a vaidade é um veneno perigoso.
A faca rasga a garganta do animal, manchando de vermelho as mãos da realeza agora saciada. Sempre que o mais forte é ameaçado o mais fraco geme. Nada mais fácil e revigorante do que chutar cachorro morto.
Desconhecem os governantes sobre os ensinamentos do antigo sábio: "quem vive para si vive em vão, quem vive para os outros vive eternamente".
Não distante um franzino vira-latas fuça o lixo atrás de alimento. O corpo consumido pela sarna mal é capaz de manter em pé o pequeno animal. Desde que nasceu sua vida solitária tem sido uma incansável busca pela sobrevivência. Sobrevivência essa que será cessada em breve para acalmar com sangue os Deuses do Jardim do Ego.
Não eram dólares, barras de ouro nem barris de petróleo, a moeda de troca naquele aparente pacato vilarejo era a vaidade. Com vaidade se pagava e com vaidade se cobrava e como eram altos os preços do mercado.
No reino da vaidade cada ser humano é um feudo e cada feudo é pateticamente administrado como se fosse o mais importante do mundo. Dezenas, centenas, milhares de prefeitos, senhores e generais, cultuando seus domínios como se fossem o centro do universo.
Quando Copérnico atestou que a Terra gira ao redor do Sol ele ainda não era capaz de enxergar uma verdade maior: a Terra gira ao redor do umbigo de cada ser humano.
Pequeninas cargas de energia que quando amontoadas em determinada ordem geram uma infinidade de variações, que dentro da realidade humana podem se manifestar como santos ou demônios. E eram demônios que consumiam cada grama do pequeno vilarejo, em troca de uma momentânea foto no hall da fama dos há muito esquecidos antepassados.
Território limitado e cercas bem definidas, forçam a ganância a avançar por novos reinos imaginários registrados em ata e formalizados oficialmente em siglas. O organograma na parede materializa o que não existe.
Mesmas pessoas, mesmos prédios, nova administração, fundada exatamente sobre as mesmas premissas das administrações anteriores. Se digo que sim escuto um não, se dizem que não retruco com o sim. Positivo, negativo; aprovado, refutado. Muito foi feito, mas pouco foi mudado.
Pausa para o café. O inocente vira-latas respira seus últimos sopros de ar.
Cada frase um discurso, ouvidos escancarados para absorver a genialidade alheia, fortemente ancorada em meias verdades cuidadosamente estabelecidas sobre resultados pouco conclusivos. Entenda, você não precisa da verdade, precisa da minha opinião.
E assim, um atrás dos outros eles vão e vem. Sempre eternos em suas hegemonias temporárias. Chegam fortes e gordos e partem velhos e cansados; a vaidade é um veneno perigoso.
A faca rasga a garganta do animal, manchando de vermelho as mãos da realeza agora saciada. Sempre que o mais forte é ameaçado o mais fraco geme. Nada mais fácil e revigorante do que chutar cachorro morto.
Desconhecem os governantes sobre os ensinamentos do antigo sábio: "quem vive para si vive em vão, quem vive para os outros vive eternamente".
22/05/2012
Escombros
Por sob os escombros do prédio da empresa de segurança, jazia o corpo ainda vivo de uma jovem senhora de seus quase trinta e cinco anos. Pálida, apática e coberta de cimento, lenta e dolorosamente seu ser se fundia com as ruínas.
Não que ela tivesse desistido, pelo contrário, seu coração sozinho bombeava o sangue de todos os feridos, como se a própria estrutura metálica da edificação tivesse se transformado em veias e artérias.
"Sinto muito medo", foi o que ela me disse vinte anos depois do acidente. Me confessou que de alguma forma sua mente ainda estava presa aos destroços. Como o pneu velho que atirado ao mar se transforma em milhões de pequeninos seres que em sua superfície encontram moradia, assim também as memórias se fundem aos cacos das lembranças, que costuradas em redes nervosas sangram muito para ser removidas.
Ainda assim, presa e curvada, nunca a vi desistir. Era como se seu coração tivesse desenvolvido uma habilidade de sobreviver e carregar o corpo adiante, mesmo quando o cérebro há muito já havia desistido.
Foi através dessa vontade que tive o privilégio de assistir seu renascimento, enquanto rastejava para fora de seu mundo reprimido. "Não é questão de força ou fraqueza, mas de saber que ainda tenho muito o que fazer", me falou depois.
E ela fez mesmo.
Caminhou por onde outros diziam ser impossível, escutou atentamente os que não tinham voz, carregou no colo os que não podiam andar. Incansável e humilde, nunca a vi pedir parabéns, nem nunca a vi se sentir lisonjeada com as palmas. Em sua cabeça sua missão era clara: fazer o bem é o único caminho possível, o que existe para ser elogiado?
Um dia reapareceu radiante e me disse com uma enorme verdade: "obrigado por me libertar". E eu respondi: não somos dois você e eu, nossa liberdade é compartilhada. Eu que preciso lhe agradecer por me abraçar tão forte quando as vigas cederam. Obrigado, mãe.
Não que ela tivesse desistido, pelo contrário, seu coração sozinho bombeava o sangue de todos os feridos, como se a própria estrutura metálica da edificação tivesse se transformado em veias e artérias.
"Sinto muito medo", foi o que ela me disse vinte anos depois do acidente. Me confessou que de alguma forma sua mente ainda estava presa aos destroços. Como o pneu velho que atirado ao mar se transforma em milhões de pequeninos seres que em sua superfície encontram moradia, assim também as memórias se fundem aos cacos das lembranças, que costuradas em redes nervosas sangram muito para ser removidas.
Ainda assim, presa e curvada, nunca a vi desistir. Era como se seu coração tivesse desenvolvido uma habilidade de sobreviver e carregar o corpo adiante, mesmo quando o cérebro há muito já havia desistido.
Foi através dessa vontade que tive o privilégio de assistir seu renascimento, enquanto rastejava para fora de seu mundo reprimido. "Não é questão de força ou fraqueza, mas de saber que ainda tenho muito o que fazer", me falou depois.
E ela fez mesmo.
Caminhou por onde outros diziam ser impossível, escutou atentamente os que não tinham voz, carregou no colo os que não podiam andar. Incansável e humilde, nunca a vi pedir parabéns, nem nunca a vi se sentir lisonjeada com as palmas. Em sua cabeça sua missão era clara: fazer o bem é o único caminho possível, o que existe para ser elogiado?
Um dia reapareceu radiante e me disse com uma enorme verdade: "obrigado por me libertar". E eu respondi: não somos dois você e eu, nossa liberdade é compartilhada. Eu que preciso lhe agradecer por me abraçar tão forte quando as vigas cederam. Obrigado, mãe.
27/04/2012
Diário de bordo
- Mas a sensação era tão boa.
- E quem foi que te disse que morrer é ruim? Todos os meus pacientes que relataram casos de pós-morte disseram que tinham vontade de ficar lá para sempre.
____
Dizem que a gente nunca esquece a primeira vez. A minha foi no mar, entregue as ondas. Só me recordo da sensação de entrega, seguida por uma multidão que se aglomerava em volta do pequeno corpo sobre a areia. Eu só tinha sete anos e acabará de me encontrar com a morte, trazido de volta por um sopro desconhecido que novamente encheu de ar meus pulmões. Desde então confesso que namoramos em segredo: eu e o misterioso Desconhecido que ronda o outro lado...
- E quem foi que te disse que morrer é ruim? Todos os meus pacientes que relataram casos de pós-morte disseram que tinham vontade de ficar lá para sempre.
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Dizem que a gente nunca esquece a primeira vez. A minha foi no mar, entregue as ondas. Só me recordo da sensação de entrega, seguida por uma multidão que se aglomerava em volta do pequeno corpo sobre a areia. Eu só tinha sete anos e acabará de me encontrar com a morte, trazido de volta por um sopro desconhecido que novamente encheu de ar meus pulmões. Desde então confesso que namoramos em segredo: eu e o misterioso Desconhecido que ronda o outro lado...
14/04/2012
Gira-gira
Descendo a ladeira giramos de novo, mesma trilha de sempre, repetida dia a dia nos mesmos centímetros. O que me motiva é apenas saber que não sou mais o mesmo, escolho o caminho pelo mesmo erro de novo, mas agora tenho consciência disso. Mudei...
Grande monstro que no escuro habita meus sonhos, você pode me atacar o quanto quiser, estou entre amigos e não vou me render.
Olho em volta, imersos caminhamos na mesma direção. Diversas espécies, diversos indivíduos, cada qual no mesmo jogo, imaginando egoisticamente que seu sofrimento e sua glória são os maiores do mundo.
Entorno até o fim com goles largos, um brinde a Roda da Vida! Gira-gira-gira novamente.
Existe libertação? Existe liberdade? Brilha a grande lua cheia sob o céu de outono. Nada para ser iluminado, nada para iluminar. A flor de lótus desabrocha completamente no pântano, mas não existe ninguém para testemunhar.
Olhos nos olhos do monstro. Ele rugi, eu sorrio. Você quer esse corpo? Não estou nele. Você quer essa mente? Não estou nela. Você quer esse espírito? Existo além dele. Sou tudo isso, sou você, criador e criatura fundidos na criação. Constante, apenas uma natureza. Obrigado por me mostrar o caminho, deixe-me agora voltar e sofrer dos mesmos males novamente, assim posso acender as tochas que indicam o caminho aos outros.
Apenas isso. Apenas isso acalma meu coração em fogo. Um grande tolo, vivendo uma vida repleta de erros, isso sou eu. Apenas isso. E que maravilhoso.
Obrigado.
Grande monstro que no escuro habita meus sonhos, você pode me atacar o quanto quiser, estou entre amigos e não vou me render.
Olho em volta, imersos caminhamos na mesma direção. Diversas espécies, diversos indivíduos, cada qual no mesmo jogo, imaginando egoisticamente que seu sofrimento e sua glória são os maiores do mundo.
Entorno até o fim com goles largos, um brinde a Roda da Vida! Gira-gira-gira novamente.
Existe libertação? Existe liberdade? Brilha a grande lua cheia sob o céu de outono. Nada para ser iluminado, nada para iluminar. A flor de lótus desabrocha completamente no pântano, mas não existe ninguém para testemunhar.
Olhos nos olhos do monstro. Ele rugi, eu sorrio. Você quer esse corpo? Não estou nele. Você quer essa mente? Não estou nela. Você quer esse espírito? Existo além dele. Sou tudo isso, sou você, criador e criatura fundidos na criação. Constante, apenas uma natureza. Obrigado por me mostrar o caminho, deixe-me agora voltar e sofrer dos mesmos males novamente, assim posso acender as tochas que indicam o caminho aos outros.
Apenas isso. Apenas isso acalma meu coração em fogo. Um grande tolo, vivendo uma vida repleta de erros, isso sou eu. Apenas isso. E que maravilhoso.
Obrigado.
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