11/09/2012

Dia de feira

Todo dia é dia de feira. Os gritos abafados dos vendedores em meio à rua e os clientes apressados de um lado para o outro procurando o melhor pelo menor preço.

Mais por menos; o lema da sociedade de hoje. O celular pula na mesa, na mesma hora em que o e-mail chega, o facebook apita e o twitter xinga. O recado do chefe, funcionário, mulher, marido, amante, amigo, colega, começa sempre com a mesma frase: "URGENTE!!!" e uma exclamação apenas não basta.

Arrancam-se pedaços para preencher vazios que não podem ser preenchidos: “Não encontro às peças que faltam no meu quebra-cabeça, me dê as suas!”.

Assim as crianças aprendem brincando a matar um leão por dia e achar bonito; “Just do it! - Apenas faça!”, é o que dizem. Em nome de que? Em nome de quem?

Num mundo sem distâncias, de relacionamentos instantâneos, parece que as pessoas esqueceram como se relacionar. Ser amigo é mais que curtir?

Mais um dia se passou, mais um dia esquivando-se constantemente das agressões que surgem de todos os lados. Engula se quiser, mas não diga que é normal.

A mais valiosa empresa do mundo tem um valor de mercado de 600 bilhões de dólares. Apenas números imaginários em jogos de gente que se diz grande. 600 bilhões divididos por 7 bilhões de seres humanos: 85 mil dólares; mais dinheiro do que 78% dessas pessoas terão recebido em toda uma vida (The Economist, 2009). Não é normal!

A hipótese da geração espontânea há muito foi refutada; se algo cresce, alguém tem de diminuir. Mais, mais, mais, garante o comprimido de ganância distribuído na merenda.

Engula se quiser, mas não diga que não foi avisado, as estrelas são testemunhas.

Lá no fundo do espírito, no porão escuro das memórias abandonadas, o buraco negro do desconhecido continua ativo. O que sacia?

Os olhos encontram o céu, vasto dos dois lados. A brisa sopra suave no jardim e dentro não encontra obstáculos. Comunhão completa com o Cosmos; se tudo que é, é tudo de nós, por que brigar por uma dúzia de laranjas e meio quilo de tomate?

04/09/2012

Ao centro do centro

Quando vejo as fotos tiradas em Marte pelo robô da Nasa me sinto feliz e triste ao mesmo tempo. Feliz, por evoluirmos como espécie a ponto de ousar com sucesso uma missão tão difícil. Triste, por ver que as fotos não passam de pilhas de pedras avermelhadas, que pouco vão contribuir para preencher nosso sentimento mútuo de solidão.

Sem esforço me lembro quando me apaixonei por viajar. Conheci os recantos mais afastados, paradisíacos e, por vezes, inóspitos do que se chama de alma humana. Sim, porque viajar pelo mundo não requer mais do que dinheiro e um passaporte. Viajar para dentro de você, por outro lado, requer uma série de habilidades que devem ser desenvolvidas com uma prática incessante.

A primeira delas começou a ser desenvolvida quando escalava árvores de mais de 30 metros sem nenhum tipo de equipamento de escalada ou de segurança. Eu nunca escalei para provar que era capaz, ou para superar o desafio da altura. Eu escalava porque gostava de estar com as árvores. Nunca cai ou me machuquei e atribuo isso não a minha habilidade ou técnica, mas simplesmente pelo fato que eu confiava nas árvores. Confiar além da razão, esse é a primeira habilidade necessária.

A segunda eu aprendi com a meditação: observar sem interferir. Temos pouco hábito de simplesmente observar, somos educados desde pequenos a tecer comentários e opiniões sobre as coisas que chegam até nós. Observar sem interferir significa estar livre de julgamentos sobre bom ou ruim, melhor ou pior. Observar sem interferir, essa é a segunda habilidade necessária.

Por fim, a terceira habilidade, não é bem uma habilidade, é uma qualidade: determinação. Estar determinado é fundamental para seguir adiante, mesmo quando tudo fluir na direção contrária. Sem uma determinação pura ninguém pode se arriscar nos meandros da alma, se você questiona sua determinação, melhor assistir a um filme e comer pipoca; essa jornada não é sua. Determinação além das limitações, essa é a terceira habilidade.

Indo adiante sem se apegar, independente do que aconteça, esse é o caminho.

Dizem que existem duas trilhas possíveis na alma humana: a clara e a escura. Percorri as duas e digo com segurança, não existem duas trilhas distintas. Não se prova o amor, sem sentir o pavor; nem o êxtase, sem mergulhar no medo. E quando digo provar, me refiro a realmente experimentar todas as dimensões de cada pensamento, emoção e sentimento, não nossa prática diária de sentir um pouco e logo depois entulhar nossa consciência com novos estímulos.

E o que existe do outro lado do caminho que recompense tantos desafios? Nada além do que você já tem hoje, só que temperado com uma paz e uma certeza enormes. Não há libertação maior do que se reintegrar a um Cosmos que você nunca deixou, apenas acreditava que estava separado.

Nesse exato momento somos tudo que existe, sempre existiu e sempre existirá, sem nenhuma mácula.

Suas respostas não estão do lado de fora; não estão na Índia, Japão, Itália ou Estados Unidos. Também não estão em Marte ou Plutão, estão exatamente em você: vá buscá-las!

27/07/2012

Rotina

Tem um corpo no meio da sala.

Eu o conheço.
Não sei onde estou.
Não sei o que aconteceu.
Não sinto nada...

A concha tem fundo.
Me aconchego.
Hiberno.
Saudades da primavera.

23/07/2012

Mente aberta

Já estive aqui antes. Me lembro direitinho: a mesma confusão, o mesmo isolamento. 5:55h da madrugada, os olhos querem fechar, mas a mente não deixa.

"Protegido, castigado, contrariado.
Perdido, ferrado, enganado.
Adormecido, afastado, abandonado.
Esquecido, isolado, guardado."

Vejo que as palavras que entalhei no fundo do poço continuam aqui: "corpo fechado". Um lembrete.

A diferença é que dessa vez me conheço mais; estar aqui só aumenta minha determinação. Eu cresço na dificuldade...

17/07/2012

Divino Fracasso

O hall da fama dos nocauteados está sempre vazio, mas é o que guarda as melhores histórias. Página 255 do quinquagésimo terceiro caderno dos derrotados: minha história completa, em toda sua obscura glória.

O mais interessante de se ler as histórias dos perdedores é que o final nunca é importante. Dessa forma, sempre que folheio essas antigas lembranças nunca leio o último parágrafo. Carrego as histórias desses anti-heróis com a pureza da sua luta e não da decepção de seus resultados. Se puder dizer que algo aprendi, é que existe sempre muito esforço em cada derrota.

Poderia falar horas sobre essas histórias, contando as peculiaridades de cada conto, mas sei que seu tempo é curto, caro leitor, assim prefiro contar apenas a minha.

Me lembro como se fosse ontem, um dia 17 de julho, frio e úmido, sem nada de especial, foi quando aquela ideia maluca me acertou em cheio. Aquele dia mal podia imaginar que pensaria nela nos 365 dias seguintes, mal imaginava que ela se tornaria meu céu e meu inferno.

Contra tudo e contra todos levei meu plano adiante e me assustei quando comecei a notar que, apesar das mínimas probabilidades, as coisas começavam a confabular na direção que eu sonhava.

Em pouco menos de um ano eu me tornei um expert nela, sem nunca tê-la visto, tocado ou sentido. Sabia de todos os detalhes, completava as histórias dos que já tinham experimentado, como um professor que orienta seus alunos. Contudo, apesar de manter uma aparência externa confiante e descontraída, por dentro sentia lapsos de que talvez não pudesse alcançar o que almejava.

A verdade é que quando uma ideia se torna uma obsessão, ao invés de nutrir ela consome seu portador. Mesmo assim, mesmo duvidando de minhas capacidades, passei a treinar diariamente, usando todos os recursos e técnicas disponíveis. Pesquisei, questionei e interagi com tudo que aparecia em minha frente. Tracei todos os detalhes, todas as possibilidades, meu plano era infalível, com rotas redundantes em todos os seus pontos críticos. O que não era infalível ou redundante era eu.

O mais difícil de trilhar o caminho do fracasso é que você só descobre que falha no último instante. Emociono-me lembrando daquele eu confiante que por muitas vezes desfilou nesses 365 dias. Como ele acreditava que tudo seria fácil. Se por um só instante olhasse com clareza teria visto que não era normal fazer tudo aquilo por algo tão simples, mas falar do destino depois que ele se desdobra é fácil.

Mesmo assim não posso deixar de comentar sobre sua garra e coragem, como ele mergulhou em águas negras que a maioria não gosta nem de imaginar. Como seu corpo franzino aprendeu a conter e aliviar a dor de muitas situações de sofrimento sem perder o riso no rosto. Como ele se tornou íntimo do medo, quando todos o escondem repetindo para si mesmos que são imunes.

Talvez você se pergunte se eu teria desistido da ideia se soubesse no começo que não seria capaz de alcança-la, ou se iria tentar algo diferente. A resposta é: teria feito de qualquer jeito e não teria mudado nada, pois não há nada mais que pudesse ser feito. O sucesso não é apenas fruto de seu empenho, mas de uma série de causas e condições propicias que precisam estar presentes.

Talvez não fosse o momento certo. Talvez não fosse para acontecer. Muitos dirão que não importa o resultado, mas sim o caminho trilhado, que não importa vencer e sim competir, mas são justamente esses que nunca vejo folheando os cadernos do hall dos nocauteados.

O que aprendi é que o fracasso não é ruim apenas porque existe uma história bonita por trás dele, mas porque a derrota também tem muitas qualidades. Ninguém importuna os perdedores na rua, ninguém exige dos perdedores mais do que eles podem dar, assim os perdedores vivem em paz no último pelotão, aquele que nunca é despachado para a guerra.

Fracassar me fez perceber que sou comum, me fez perceber que sou vulnerável, que pertenço a algo muito, muito maior, sobre o qual não tenho controle algum. Perder é uma lição impagável de humildade.

Curioso sobre qual foi à ideia que me acertou? Deixo isso para você imaginar. Não é importante. O último parágrafo dessa história é de sua autoria, ou talvez apenas ainda não tenha sido escrito.

29/05/2012

Câncer em calda

A atarefada realeza corre esbaforida por sob a cabeça de seus súditos, os últimos acontecimentos tinham colocado em cheque sua autoridade e alguém tinha de pagar por isso.

Não distante um franzino vira-latas fuça o lixo atrás de alimento. O corpo consumido pela sarna mal é capaz de manter em pé o pequeno animal. Desde que nasceu sua vida solitária tem sido uma incansável busca pela sobrevivência. Sobrevivência essa que será cessada em breve para acalmar com sangue os Deuses do Jardim do Ego.

Não eram dólares, barras de ouro nem barris de petróleo, a moeda de troca naquele aparente pacato vilarejo era a vaidade. Com vaidade se pagava e com vaidade se cobrava e como eram altos os preços do mercado.

No reino da vaidade cada ser humano é um feudo e cada feudo é pateticamente administrado como se fosse o mais importante do mundo. Dezenas, centenas, milhares de prefeitos, senhores e generais, cultuando seus domínios como se fossem o centro do universo.

Quando Copérnico atestou que a Terra gira ao redor do Sol ele ainda não era capaz de enxergar uma verdade maior: a Terra gira ao redor do umbigo de cada ser humano.

Pequeninas cargas de energia que quando amontoadas em determinada ordem geram uma infinidade de variações, que dentro da realidade humana podem se manifestar como santos ou demônios. E eram demônios que consumiam cada grama do pequeno vilarejo, em troca de uma momentânea foto no hall da fama dos há muito esquecidos antepassados.

Território limitado e cercas bem definidas, forçam a ganância a avançar por novos reinos imaginários registrados em ata e formalizados oficialmente em siglas. O organograma na parede materializa o que não existe.

Mesmas pessoas, mesmos prédios, nova administração, fundada exatamente sobre as mesmas premissas das administrações anteriores. Se digo que sim escuto um não, se dizem que não retruco com o sim. Positivo, negativo; aprovado, refutado. Muito foi feito, mas pouco foi mudado.

Pausa para o café. O inocente vira-latas respira seus últimos sopros de ar.

Cada frase um discurso, ouvidos escancarados para absorver a genialidade alheia, fortemente ancorada em meias verdades cuidadosamente estabelecidas sobre resultados pouco conclusivos. Entenda, você não precisa da verdade, precisa da minha opinião.

E assim, um atrás dos outros eles vão e vem. Sempre eternos em suas hegemonias temporárias. Chegam fortes e gordos e partem velhos e cansados; a vaidade é um veneno perigoso.

A faca rasga a garganta do animal, manchando de vermelho as mãos da realeza agora saciada. Sempre que o mais forte é ameaçado o mais fraco geme. Nada mais fácil e revigorante do que chutar cachorro morto.

Desconhecem os governantes sobre os ensinamentos do antigo sábio: "quem vive para si vive em vão, quem vive para os outros vive eternamente".

22/05/2012

Escombros

Por sob os escombros do prédio da empresa de segurança, jazia o corpo ainda vivo de uma jovem senhora de seus quase trinta e cinco anos. Pálida, apática e coberta de cimento, lenta e dolorosamente seu ser se fundia com as ruínas.

Não que ela tivesse desistido, pelo contrário, seu coração sozinho bombeava o sangue de todos os feridos, como se a própria estrutura metálica da edificação tivesse se transformado em veias e artérias.

"Sinto muito medo", foi o que ela me disse vinte anos depois do acidente. Me confessou que de alguma forma sua mente ainda estava presa aos destroços. Como o pneu velho que atirado ao mar se transforma em milhões de pequeninos seres que em sua superfície encontram moradia, assim também as memórias se fundem aos cacos das lembranças, que costuradas em redes nervosas sangram muito para ser removidas.

Ainda assim, presa e curvada, nunca a vi desistir. Era como se seu coração tivesse desenvolvido uma habilidade de sobreviver e carregar o corpo adiante, mesmo quando o cérebro há muito já havia desistido.

Foi através dessa vontade que tive o privilégio de assistir seu renascimento, enquanto rastejava para fora de seu mundo reprimido. "Não é questão de força ou fraqueza, mas de saber que ainda tenho muito o que fazer", me falou depois.

E ela fez mesmo.

Caminhou por onde outros diziam ser impossível, escutou atentamente os que não tinham voz, carregou no colo os que não podiam andar. Incansável e humilde, nunca a vi pedir parabéns, nem nunca a vi se sentir lisonjeada com as palmas. Em sua cabeça sua missão era clara: fazer o bem é o único caminho possível, o que existe para ser elogiado?

Um dia reapareceu radiante e me disse com uma enorme verdade: "obrigado por me libertar". E eu respondi: não somos dois você e eu, nossa liberdade é compartilhada. Eu que preciso lhe agradecer por me abraçar tão forte quando as vigas cederam. Obrigado, mãe.