07/03/2007

Causos do Inconsciente - Parte 02 - Alaya Vigya

ALAYA VIGYA

“In Sanskrit the name is alaya vigyan, the house where you go on throwing into the basement things that you want to do but you cannot…”

“Em sânscrito a palavra é alaya vigyan, a casa em cujo porão você vai juntando coisas que gostaria de fazer, mas que não pode...”


Nas noites silenciosas sem Lua, quando o trafego da avenida diminui, às vezes acordo com o som de um grito grave e repetitivo, como o rosnar de um leão, ecoando abafado por paredes distantes.

Quando pequeno tal som me assustava, acuado no quarto ao lado sobre a cama de casal, mamãe dizia baixinho em meu ouvido, “é só um pesadelo, pronto, já passou... Dorme meu bem, dorme...”.

Anos mais tarde sozinho e independente aprendi a lidar com o mesmo som misterioso, mais maduro passei a deixá-lo de lado. A cabeça vira, o travesseiro amassado também e o sono volta novamente.

Mas não nessa semana...

Se escrevo esse texto de madrugada não é por insônia, mas como uma fuga, uma fuga do rugido, que passou a estar cada vez mais próximo e intenso. Não sei se algo se aproxima de mim, ou se eu me aproximo de algo.

Por vezes quando acordo procuro olhar em volta, mas meus olhos não acostumados à escuridão não conseguem distinguir as sombras dos vultos, por isso prefiro mantê-los fechados, com força.

Até mesmo a luz que passei a deixar acessa no corredor não consegue mais aplacar meu medo.

A porta escancarada guarda o mistério que me ronda e não há nada que possa fazer para escapar dessa situação.

Como um labirinto de mil formas sinto minha percepção se descolar do corpo, como se em um segundo pudesse abraçar todo o planeta e no outro não passasse de uma pequenina cabeça de alfinete.

Luto para não perder minha identidade, mas o fluxo é forte demais. Desisto do sono e ligo a televisão.

DEIXEM-ME EM PAAAAAAAAAZ!!!!!!
...

“Pedidos em vão querido, não há ninguém aqui além de nós para ouvir tuas preces.

Por tempo demais tens juntado em teu porão coisas que não gostaria de encarar. Viemos apenas cobrar nossa parte de tua consciência que também nos pertence.

Por sermos habitantes das trevas, sentimos que a solidão queima mais do que o Sol.

Entregue-se a nós, somos todos frutos da mesma mente!

O que tens de tão precioso para defender com tanta dedicação?

Que medo é esse que guarda nada mais do que tuas próprias dúvidas e insatisfações?

Somos os fantasmas que protegem tua casa quando você sai.

Somos as assombrações que guardam teu sono quando você adormece.

Deixe que vejamos a superfície para também beber do néctar da vida!

Não vê que tua vontade de esquecer completamente nos alimenta?”

...

O coração bate forte, o sangue fervilha, as malditas vocês voltaram, mas dessa vez elas não vão conseguir o que querem! NÃO! Dessa vez não vou deixar que se aproximem, vou me trancar aqui até que se vão, se é esse corpo que querem, desse corpo me livrarei!

A navalha dilacera os pulsos e de vermelho tinge o chão, a cabeça distante sente ouvir coisas... Coisas, que coisas? É assim... O que? Quem é você? Quem é você? Querido? Querido! Acorde! Você chegou........

...

Cheguei...

- Mas... Quem são vocês?

- Nós?

- Sim, não me lembro de vocês.

- Somos você num nível muito profundo querido.

- Profundo quanto?

- Difícil mensurar, as medidas do inconsciente não são assim palpáveis, mas se tua vida fosse uma casa e teu quarto na cobertura, nós seríamos os habitantes do porão.

- Mas se vocês moram comigo há tanto tempo porque nunca os vi?

- Você esteve trancado em teu quarto durante muitos anos querido, por mais que batêssemos a tua porta você nunca nos recebeu. Aliás, poucas são as visitas que você permitiu adentrar em teus aposentos.

- Não entendo.

- Você não se lembra porque ainda não tinha consciência, mas anos atrás quando a grande divisão se fez e você selecionou apenas os escolhidos, fomos isolados naquele território escuro onde você guardava as coisas que gostaria de enfrentar, mas que não podia.

- Então eram vocês os responsáveis por aqueles rugidos assustadores?

- Não eram rugidos, muito menos assustadores, eram apelos por socorro, seus ouvidos treinados a escutar apenas o que quer ouvir é que não eram capazes de entender o significado de nossos apelos.

- E porque agora te escuto tão claramente?

- Porque você abriu mão da falsa segurança que cultivava.

- Como assim?

- Você morreu querido.

- COMO ASSIM?!

- Sim, você morreu. Morreu para esse passado obscuro, mas o processo ainda não está completo, você precisa aceitar. Venha, me de sua mão. Não há mais nada a ser revelado.

- Aceito.

...

Vozes distantes e uma luz forte e branca, cheiro forte.

BIP, BIP, BIP.

Apitos ao meu lado, pisco os olhos, está tudo embaçado, me faltam forças, tento dizer algo, a boca não se mexe.

Não quero mais dormir, mas é tão difícil que não consigo evitar... evitar... evitar...

...

- Por favor, me diga que ele vai ficar bom Doutor!

- Ele perdeu muito sangue e está fraco, apesar disso não houve seqüelas graves. Acredito que em pouco tempo ele terá alta e poderá voltar para casa.

- Deus ouviu minhas preces!

...

Hoje sei, que os porões de Alaya Vigya é que guardavam os pedaços arrancados de mim.

Sempre imaginei que eles estivessem enterrados no passado, mas na verdade eram para lá que eles iam.

Agradeço por um dia voltarem a me assombrar, só agora me sinto completo, como se minha alma estivesse um pouco mais cristalizada.

Se pudesse voltar um pouco no tempo não teria tomado medidas tão drásticas, nem decisões tão fúteis e egoístas, mas talvez assim o tenha feito para me defender de sentimentos maiores dos quais não estava preparado para suportar.

Tenho sentido a Existência em si mais presente, como se não houvesse lugar em que não me sentisse em casa.

O próprio Universo, lar doce lar...

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